15 dezembro 2010

MANSIDÃO


Eu era menino, lá em Minas, bola de gude no chão, pipa voando no ar, pião rodando na mão... De dia brincando naquela terra, de noite lutando distante guerra... Os homens da vizinhança se reuniam à frente da nossa casa para ouvir o rádio – era o único da redondeza – notícias da guerra na Europa. E o Carlos Frias dizia com sua voz dramática, fundo musical de “Moonlight Serenade”: “E Stalingrado continua a resistir.” Ao que, ouvindo isso o Zé da Cotinha – a Cotinha era uma vizinha velha desdentada maledicente que estava sempre pedindo uns pauzinhos de lenha emprestados – o Zé da Cotinha anunciava com voz solene que ninguém ousava contestar: “Pois hoje, à meia-noite, Stalingrado vai mudar de nome. Vai se chamar Hitlerlogrado...”
Era emocionante. O pai ia me mostrando, no enorme mapa da Europa pendurado na parede da sala, os lugares que tinham sido mencionados no rádio, lugares onde as metralhadoras e os canhões faziam soar a “sinistra melodia” da guerra. E eu imaginava a música do pistão a tocar languidamente o “toque de silêncio”, ao cair da noite, em memória daqueles que haviam sido silenciados para sempre.
Quando a guerra acabou – eu tinha 12 anos – perguntei ao meu pai: “Agora quais serão as notícias que vão aparecer nos jornais?” Meu pai respondeu: “Os jornais vão falar sobre política.” Pensei: “Então vai ser muito chato...” Fiquei triste porque a guerra tinha acabado. A guerra é mais emocionante que a paz. Agora os jornais estão interessantes de novo. Não mais as banalidades da corrupção de políticos grotescos que vomitam eloquência com dedo em riste. Emoção de verdade. Adrenalina. Ação. Guerra. Guerra com prenúncios de fim do mundo. Fico hipnotizado pelas manchetes. Elas me colocam no meio da emoção da ação. Essa é a razão porque os filmes de guerra são campeões de bilheteria: todo mundo quer experimentar as emoções da guerra sem correr os seus perigos. A ação é rápida. Meu pensamento, lerdo, não consegue segui-la. As imagens tomam o lugar das idéias. Sou espectador de um filme de guerra – um mero espectador. Foram outros os que escreveram o “script”. Eu nada posso fazer além de contemplar. Estou estupidificado intelectualmente e paralisado praticamente.

*Rubem Alves
(texto enviado a pesquisa por Francisco Thiago Cavalcante)

Nenhum comentário:

Postar um comentário